No Processo de Descolonização do Pensamento


Imagem: frame do filme Kbela, de Yasmin Thayná (na foto a atriz Isabél Zuaa)

Nós, pessoas negras, crescemos em uma sociedade que, constantemente, fabrica fórmulas e mais fórmulas para nos invisibilizar, reduzir ou até mesmo aniquilar nossa autoestima.

Nós, pessoas pretas, crescemos em uma sociedade que tenta, permanentemente, e se utilizando de mecanismos perversos, desvalorizar o fenótipo negro e destruir nossa identidade. Uma sociedade que tenta animalizar os nossos traços, que diz que a única beleza que possuímos é a que se encontra em nossos corpos, em nossos músculos, em nosso quadril, ou então que a beleza estética que possuímos não é o padrão de beleza imposta e reconhecida na sociedade, que enaltece outros tipos de traços, outras tonalidades de pele, olhos e cabelos, e as põe como norma, como o padrão a ser seguido e assimilado por todos e todas que almejem se enquadrar no estereótipo de beleza e fazer parte, ser aceito, reconhecido, admirado. Uma sociedade que anula os nossos saberes e conhecimentos, ou quando os assimila, é através de uma apropriação que deslegitima sua fonte primeira. Essa mesma sociedade repleta de supremacistas brancos que insistem em acreditar que são os únicos detentores do conhecimento e do saber.

O necessário rompimento para a descolonização do pensamento

No processo de descolonização do pensamento é necessário rompermos com o pensamento colonial-opressor; uma tarefa árdua e que exige vigilância constante.

A ideologia opressora ainda é a vigente nas principais estruturas sociais. Dessa forma, são poucas as possibilidades de ir de encontro a nós mesmos, em um processo de contínua descoberta, pois, para que isso se dê de forma integral, é necessário olharmos para o nosso passado ancestral, descobrirmos as nossas origens e irmos de encontro à nossa história, às nossas raízes. Porém, ironicamente, até isso nos foi tirado. Em troca nos foi oferecida a leitura proposta pelo branco-opressor, pelo colonial-opressor.

A não representação nos espaços de poder, na política, nas universidades, na arte, na mídia, na publicidade, faz com que seja construída, desde a infância, uma sensação de não representação e não pertencimento. A não imagem da pessoa negra como sujeito, apenas como objeto, muitas vezes contribui para uma não aceitação de nós mesmos e de nossas próprias características físicas. É um procedimento perverso que visa o aniquilamento da nossa autoestima e do nosso amor-próprio. No lugar, acabamos, inconscientemente, por incorporar a leitura branco-opressora que nos empurra goela abaixo determinadas concepções da realidade que resultam na construção de nossas preferências/referências artísticas, intelectuais… de determinados gostos que foram construídos ao longo de nossa história de vida. Sim, gosto é uma construção, e uma construção social que se deve sim discutir! Por isso é necessário um mergulho profundo em nosso próprio Ser para que percebamos as questões intrincadas que envolvem o necessário processo de descolonização do nosso pensamento.

No caminho da cura

Existe um forte movimento de reafirmação da identidade negra promovido por muitas correntes militantes da causa afro. Porém, os danos causados à autoestima, a autoafirmação e também à saúde mental das pessoas pretas, em muitos casos, é irreversível. Infelizmente, grande parte da população negra ainda se encontra submergida em um lamaçal de construções padronizadas daquilo que é o belo e aceitável ao olhar da sociedade, e que não consegue, simplesmente não consegue, se desfazer do que lhes foi introjetado desde a infância: a ideia da não beleza de seus corpos, de seus traços… da impossibilidade de pertencimento e inserção na sociedade se não abdicar, minimamente, de algumas de suas características ancestrais… enquanto não realizar algumas mutilações em seus corpos. É forte. Sim, é muito forte. Mas essas mutilações estão normatizadas e naturalizadas desde sempre na sociedade.

O processo de transição que se faz necessário não é apenas em nossa estética, é, principalmente, em nosso íntimo, em nossa consciência, em nosso pensamento. Na desconstrução das concepções que nos foram introjetadas desde sempre, e que dessa forma, querendo ou não, fazem parte do nosso inconsciente e manifesto em nossa forma de estar presente no mundo e de sentir o mundo.

Marcas profundas foram criadas em nosso íntimo. Traumas dolorosos foram introjetados em nossos corpos. Existe uma estrutura que foi construída e incentivada por uma sociedade racista que tenta, de todas as formas, destruir nossa autoestima. Um processo de destruição que é ensinado às nossas crianças e cujas sequelas manifestam-se por toda a vida.

Portanto, é necessário a tomada de ações que estimulem o desenvolvimento de um pensamento crítico acerca das reiteradas tentativas de aniquilamento da identidade negra. É urgente a realização de ações permanentes que contribuam para a autoafirmação, autovalorização e para concretizar a inserção da beleza negra como norma vigente na sociedade.