O que há em comum entre o processo de evangelização realizada pelos padres jesuítas à população indígena e africana no período do Brasil Colonial e o procedimento de conversão e doutrinação realizado pelas igrejas evangélicas em seus cultos nos dias de hoje?
Voltemos no tempo e olhemos a permissividade dos padres jesuítas ao contribuírem para com a escravização da população negra; quando os mesmos valiam-se de um deturpado entendimento bíblico de que a população negra seria pertencente a uma linhagem amaldiçoada por Noé (não entrarei com profundidade nesta questão), e que por isso a dor da escravidão contribuiria para a remissão de seus pecados, sendo o prelúdio da glória da salvação eterna, a salvação de suas almas. Essa é a sustentação teológica escravocrata defendida por muitos padres jesuítas e que serviu de respaldo para legitimar a escravidão; como o fez o Padre Antônio Vieira em seu sermão proferido aos escravizados no Recôncavo Baiano, em 1633, com a intenção de persuadi-los à resignarem-se em sua condição de escravizados. Seu sermão suscitava a imagem de Jesus Cristo para fazer uma analogia à condição de dor e sofrimento ao qual se encontrava a população negra, alegando que a dor e o sofrimento vivenciados por Jesus Cristo fizeram com que ele obtivesse a salvação, a santificação. Essa notória aproximação tinha como objetivo amainar os ímpetos insubordináveis de muitos escravizados.
Agora, voltemos para os dias atuais e analisemos o destrinchar da questão.
É perceptível a todos nós o quanto está intrínseco no inconsciente coletivo da sociedade a ideia de que a cor branca remete à pureza e à inocência e a cor preta remete à impureza e à maldade, correto? Pois bem. Essa concepção também se reflete no inconsciente coletivo da sociedade em relação à cor da pele. Eu sei, parece absurdo! Mas o simples fato de determinada pessoa possuir a pele escura, muitas vezes já serve como um julgamento à priori da qualidade de seu caráter. Exagero? De forma alguma! É nítido, e expresso na conduta comportamental de maior parte da população. Exemplos podem ser vistos na postura do segurança ao se deparar com a entrada de um homem negro na porta giratória do banco; ou na viatura policial que diminui a velocidade quando passa por uma determinada pessoa negra, a fim de analisá-la com maior atenção e ver se, por acaso, a mesma não estaria comprometendo a segurança e a ordem social. Também pode servir como exemplo, a senhora branca que segura com maior firmeza sua bolsa ao dar de encontro com um homem negro; ou a pessoa que atravessa para outro lado da rua durante a noite ao avistar um homem negro indo em sua direção, e inúmeros outros exemplos de um julgamento à priori ao qual está submetida a população negra.
Ok, mas afinal, o que isso tem a ver com a religião evangélica e a suposta doutrinação realizada por seus pastores?
Quando determinado pastor apregoa que o culto religioso de matriz africana está diretamente ligado a uma prática maléfica, e que as entidades reverenciadas nesses cultos pertencem a um baixo padrão vibracional de energia… ou (falando de forma direta e utilizando-se das mesmas palavras que estes pastores se utilizam) quando eles dizem que determinado culto é uma reverência ao Diabo, ou que a própria entidade reverenciada é o próprio, eles estão na verdade contribuindo para a desumanização da comunidade negra que cultua e reverencia essas entidades… Eles estão demonizando o culto aos Orixás e fazendo jus ao entendimento deturpado de que tudo o que é próprio e oriundo da ancestralidade africana, portanto, da população negra, é amaldiçoado: sua religião é amaldiçoada, sua cultura é amaldiçoada, seus costumes e rituais são amaldiçoados… Seu samba… seu carnaval são amaldiçoados… Sua cor é amaldiçoada…! Tudo isso nem sempre se dá de forma tão explícita e direta; mas a conduta de grande parte das lideranças evangélicas, mesmo que de forma subliminar, tem por objetivo a desvalorização da cultura africana, a desumanização de um povo que tem como uma das únicas possibilidades de aproximar-se de sua ancestralidade, de sua origem e de sua história, e mantê-la viva, a realização das práticas de religiões de matriz africana, através de seus ritos e rituais, isso devido ao constante apagamento da verdadeira história do povo africano; história esta que, constantemente, é relegada ao esquecimento e/ou permanece sendo considerada majoritariamente sob a ótica do branco e deturpada através de seu olhar, que, até pouco tempo (não mais) era o único responsável por disseminar o ensino da história dos descendentes africanos em solo brasileiro ao restante da população.
Então, embora existam grandes estudiosos, homens negros e mulheres negras que empenham-se na luta para com que a história do povo negro seja contada de forma fidedigna e valorizada em seus costumes, ainda é através das religiões de matriz africana que se é possível conhecer com maior fidelidade a história desse povo; e quando uma liderança evangélica demoniza tais costumes, na verdade ela está alçando os negros e negras da sociedade contemporânea ao mesmo patamar inferior de séculos atrás pelo simples fato de possuírem descendência africana, apropriando-se daquele mesmo conceito utilizado pelos padres jesuítas para justificar a escravização da população negra: a necessidade da salvação de suas almas. Por isso a conversão de tantos negros e negras às religiões evangélicas se torna análoga à prática realizada por esses jesuítas. Essa estratégia tem como caráter perverso o de fazer com que as pessoas negras que optem por converterem-se a religião evangélica, reneguem sua cultura, seus costumes, sua história… Reneguem sua própria identidade para assimilar os padrões impostos por essas pessoas brancas que bradam em alto tom que tudo que vêm da África é impuro, é mau… é do demônio! É o racismo velado. (Velado?) E o resultado pode-se ver nitidamente: o quão extensiva é a quantidade de pessoas negras convertidas à igreja evangélica, e que abominam, demonizam sua própria história, sua própria cultura, sua própria ancestralidade, acreditando que a mesma não condiz com os preceitos de Deus… que a mesma não é de Deus! O quão extensiva é a quantidade de homens e mulheres negros e negras que, sob ostensiva orientação de “seus pastores”, realizam suas conversões, justamente para se libertarem de seu passado ancestral, de sua ligação com a África Mãe, mesmo que de forma inconsciente.
Por último, mas não menos importante de ser citado, é a ostentação com que são erigidas grande parte das igrejas evangélicas e a suntuosidade das mesmas. Qual o real motivo de tamanha ostentação? O por que de serem tão suntuosas? Podemos concluir que um dos motivos de tamanha opulência, é justamente o de servir como chamariz para o arrebate de uma quantidade maior de fiéis; assim como a sua instalação em grande escala nos bairros periféricos e de subúrbios, deve-se ao fato de que é nessas localidades que encontram-se (ao menos na mentalidade desses pseudo-pastores) grande parte das pessoas que carecem de conversão, evangelização, paternalização ante a um sistema capitalista perverso que lhes impõe condições miseráveis de sobrevivência. E é justamente lá que encontram-se as pessoas que, humildes e sem terem tido a possibilidade de aprofundarem-se no desenvolvimento de um pensamento crítico acerca das questões sociais que lhes lançaram, em muitos casos, à miserabilidade, acabam assimilando para si a ideologia do opressor, não importando-se em lançar mão dos procedimentos orientados por esses líderes religiosos que apregoam que tais procedimentos irão lhes trazer a salvação, mesmo que essa salvação seja concedida após o dispêndio de algumas notas ou moedas de “vil metal” tão arduamente conquistadas durante sua contribuição para a manutenção do capital social.